A última margem da lagoa
O caminho partia dos fundos da casa rodeada de vasos e plantas, seguindo pelo mato seco até a lagoa que servia para matar a sede das pessoas e animais, criados às margens daquele vasto espelho d'água. Chegando ao destino, o menino acostumou fechar a mão em cuia para divisar ao longe a figura do pai, flutuando em sua canoa, calado e distante que sempre. Passava algum tempo na margem, esperando que seu pai viesse pegar a oferenda, até que o sol subindo rápido céu se tornava causticante e lhe forçava a volta à casa.
Uma vez venceu o medo e tentou transpor toda aquela água que os separava, mas quase morreu afogado depois de alguns passos sem saber nadar.
como se não ligasse pra nada, parado num único pensamento indecifrável, preso num silêncio eterno até a sua morte, que tornara impossível a vida com outros, em terra firme.
- Vai deixar esse de comer e passa pra dentro de casa, menino!
Cresceu ouvindo que o Pai era doido.
A lagoa evoporava diariamente em silêncio. Ao que as margens iam encurtando, o caminho de areia e pedras por vezes parecia instransponível naquele calor. O quintal passou a parecer um vasto vazio no meio do deserto. As vezes parava para observar de perto o fruto inflamado de algum xique-xique pelo caminho, ou brincar com as formigas que se amontoavam sobre a carcaça de uma vaca que morera sob o sol, secando sobre alguns pedaços do chão que ia se rachando. As vezes esquecia que levava algo consigo
Com o correr do tempo, passou a perceber o encolhimento das margens do lago situado na vastidão do quintal ressecado e o distanciamento do seu destino. O caminho de areia e pedras por vezes parecia intransponível naquele calor. Certa delas, esqueceu que levava algo consigo e parou para brincar com as formigas que se amontoavam sobre a carcaça de alguma vaca que morrera sob o sol, secando sobre um novo pedaço de chão rachado. Estagnou absorto até que o astro escalando cada dia mais rápido o céu causticou-lhe o ócio. Volta a andar sozinho e pensativo, as vezes curvando a mão sobre a vista para poder divisar na calidez do vazio trêmulo a figura silenciosa do pai, que parecia uma miragem parado esse tempo todo sobre o mesmo ponto, sentado na sua canoa, flutuando sobre o que ia restando das águas do corpo que nesses dias assomava-se apenas uma lagoa.
Mesmo feito homem continuou a atravessar solitário as margens passadas que evaporavam progressivamente, pensando feito menino que a culpa de secar a água era do pai, que nada fazia além de beber o que restara do leito de um rio ancestral, que lá corria na época do pai dele, que havia feito a mesma coisa de se enfiar naquela canoa, como se houvesse endoidado ou não ligasse mais para o resto do mundo, e os imaginava dotados de uma sede colossal por viver seus restos de vida sozinhos sob o sol.
Dia desses o espelho encolheu ao largo que pode deixar a pequena marmita bem ao lado do pai. O calor era tanto que o velho visto de perto nem parecia respirar. Ficaram ambos soturnamente calados e imóveis até cair a noite, que agora passava como se o tempo ao redor houvesse parado. O sossego paterno era tal que mais parecia uma planta, longamente enraizada por suas barbas e cabelos brancos, que desciam da cabeça ainda hirta como se fossem a frágil ponta do fio lhe tecido pela Moira, e chegavam até o que ainda havia restado d'água, agora somente uma pequena poça de lama sob a sua segura canoa singular, como se ainda fosse capaz de singrar o esquecimento.