Idéias estúpidas e/ou inacabadas

Tuesday, March 18, 2008

A última margem da lagoa

O domo abaulado do bucho cheio d'água culminava n'umbigo que parecia o fastígio do mundo. Desde nascido o menino já parecia taciturno, exibindo sempre no rosto uma expressão que aparentava ser de tristeza atávica, como se aquele cenho fosse um traço da sua estirpe. Pouco depois de conseguir dominar o equilibrio do peso de seu corpo nas pequenas pernas cambotas, a mãe lhe ensinou a primeira vereda que aprendera em vida, por onde passou apartir de então por todas as manhãs, logo que Aurora descortinava o vasto céu do sertão, levando consigo a comida que via a mãe preparar para o pai.

O caminho partia dos fundos da casa rodeada de vasos e plantas, seguindo pelo mato seco até a lagoa que servia para matar a sede das pessoas e animais, criados às margens daquele vasto espelho d'água. Chegando ao destino, o menino acostumou fechar a mão em cuia para divisar ao longe a figura do pai, flutuando em sua canoa, calado e distante que sempre. Passava algum tempo na margem, esperando que seu pai viesse pegar a oferenda, até que o sol subindo rápido céu se tornava causticante e lhe forçava a volta à casa.


Uma vez venceu o medo e tentou transpor toda aquela água que os separava, mas quase morreu afogado depois de alguns passos sem saber nadar.


como se não ligasse pra nada, parado num único pensamento indecifrável, preso num silêncio eterno até a sua morte, que tornara impossível a vida com outros, em terra firme.


- Vai deixar esse de comer e passa pra dentro de casa, menino!
Cresceu ouvindo que o Pai era doido.


A lagoa evoporava diariamente em silêncio. Ao que as margens iam encurtando, o caminho de areia e pedras por vezes parecia instransponível naquele calor. O quintal passou a parecer um vasto vazio no meio do deserto. As vezes parava para observar de perto o fruto inflamado de algum xique-xique pelo caminho, ou brincar com as formigas que se amontoavam sobre a carcaça de uma vaca que morera sob o sol, secando sobre alguns pedaços do chão que ia se rachando. As vezes esquecia que levava algo consigo




Com o correr do tempo, passou a perceber o encolhimento das margens do lago situado na vastidão do quintal ressecado e o distanciamento do seu destino. O caminho de areia e pedras por vezes parecia intransponível naquele calor. Certa delas, esqueceu que levava algo consigo e parou para brincar com as formigas que se amontoavam sobre a carcaça de alguma vaca que morrera sob o sol, secando sobre um novo pedaço de chão rachado. Estagnou absorto até que o astro escalando cada dia mais rápido o céu causticou-lhe o ócio. Volta a andar sozinho e pensativo, as vezes curvando a mão sobre a vista para poder divisar na calidez do vazio trêmulo a figura silenciosa do pai, que parecia uma miragem parado esse tempo todo sobre o mesmo ponto, sentado na sua canoa, flutuando sobre o que ia restando das águas do corpo que nesses dias assomava-se apenas uma lagoa.

Mesmo feito homem continuou a atravessar solitário as margens passadas que evaporavam progressivamente, pensando feito menino que a culpa de secar a água era do pai, que nada fazia além de beber o que restara do leito de um rio ancestral, que lá corria na época do pai dele, que havia feito a mesma coisa de se enfiar naquela canoa, como se houvesse endoidado ou não ligasse mais para o resto do mundo, e os imaginava dotados de uma sede colossal por viver seus restos de vida sozinhos sob o sol.

Dia desses o espelho encolheu ao largo que pode deixar a pequena marmita bem ao lado do pai. O calor era tanto que o velho visto de perto nem parecia respirar. Ficaram ambos soturnamente calados e imóveis até cair a noite, que agora passava como se o tempo ao redor houvesse parado. O sossego paterno era tal que mais parecia uma planta, longamente enraizada por suas barbas e cabelos brancos, que desciam da cabeça ainda hirta como se fossem a frágil ponta do fio lhe tecido pela Moira, e chegavam até o que ainda havia restado d'água, agora somente uma pequena poça de lama sob a sua segura canoa singular, como se ainda fosse capaz de singrar o esquecimento.


Wednesday, November 28, 2007

Cronofagia

Sarah subiu solitária a cadeira de fórmica na cozinha. Buscou no imo do cerebelo uma firmeza longamente esquecida por suas pernas arcaicas, varadas de varizes avitas. Sustou-se no ar perigosamente por alguns segundos, recobrando o equilíbrio com ambas as palmas das mãos voltadas para o chão. Ergueu o corpo sobre a ponta dos pés para, finalmente, desalçar da parede o empoeirado relógio de ponteiros. Descendo do móvel foi sentar-se à mesa de jantar, onde repousa o relógio branco sobre um prato, para cortá-lo em fatias que leva à boca e mastiga lentamente, como se metonimicamente comesse o próprio tempo.

Wednesday, September 27, 2006

R. Jefferson

Teatricalmente, do alto da tribuna, como se de próprio punho lho houvesse colhido do portentoso jardim das Hespérides, suspendeu entre os dedos um pomo hipotético, e, vaticinando aos presentes, tão nobres quanto os párias homéricos, declamou o preâmbulo da guerra fratricida prestes a irromper, lançando os destinos nas mãos dos deuses de culto conjunto, e seus mandatos para o Hades democrático.

Saturday, August 12, 2006

A Odalisca


Espera entre vários véus,
Envolta nas trevas da alcova,
A nudez da escrava virgem,
Escultura viva que move lenta,
E de tanta volúpia desfalece,
Como uma ode à languidez.

Afunda graciosa entre as sedas,
Arqueia os seios no ar, que vibra
Em volta com a música leda.
Enquanto a mente frenética imagina,
Movendo-se em dança delirante,
Até que lhe caiam todos os véus,
E venha a se tornar concubina.

Tuesday, February 14, 2006

O Sertão virará Mar

Pela porta aberta da casa pequena, Seu Higrófilo observa admirado a chuva que cai em gotas grossas, levantando nuvens do chão empoeirado. Lembra do avô, dizendo que o mundo e todos os seres tiveram origem no Oceano, marido de Tétis, e pousa a mão sobre o crânio seco da vaca que mês passado morreu de sede.

Pensa na vida seca, vendo as veredas do grande sertão absorverem ávidas as torrentes do céu. Permanece sentado balançando, bebendo com os olhos a enxurrada. E assim fica o dia todo, até que se fartando transborda, ao final, quando a água já lhe passa a boca. Toma então o último fôlego, e a cheia enche-lhe todo.

Thursday, January 05, 2006

Psicografando Ricardo Reis

Suspeito saber dos Deuses soberbos
o significado altaneiro, e sonho
assim ser isto tudo um jogo,
onde somos somente peças,
tendo o chão por baixo como tabuleiro.

Tuesday, December 20, 2005

Inanição

A perna pendendo pelo lado da rede, eventualmente empurrando o chão frio com a ponta do pé, prossegue com tédio a sucessão do movimento, resolvendo sincronizar o ritmo da respiração ao balanço rápido do pêndulo, até que cansando decide parar de empurrar e, passado o tempo necessário, sufocando, morre.